19 Outubro 2022
Eram seis horas e eu estava atrasada, atravessei a esquina da Rua Olmo, em Lavapiés, e ele estava encostado na parede com uma mochila nas costas. Pedi desculpas pelo atraso e com um sorriso ele me disse: “não importa, nós palestinos temos muita paciência, estamos acostumados a esperar”.
Jamal Juma nasceu em Jerusalém, em 1962, e dedicou toda a sua vida à defesa dos direitos humanos da população palestina. Seu trabalho tem se concentrado principalmente em capacitar as comunidades locais para defender seus direitos contra os crimes da ocupação israelense.
Juma é coordenador da Campanha das Redes Palestinas Contra o Muro do Apartheid, desde 2002. É militante da campanha internacional BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções contra Israel), participou de várias conferências da Organização das Nações Unidas e atualmente é coordenador da campanha Stop the Wall.
Sentamo-nos ao redor de uma mesa na sala e, enquanto preparava o gravador, Juma começou a descrever o apartheid israelense citando números: o muro da Cisjordânia mede 800 km de extensão; o de Jerusalém, 180 km; o de Gaza, 230 km e 6 metros de profundidade, em vários distritos; são 198 colônias, 18 zonas industriais e 5 em construção, 1.400 km de estradas segregadas, 64 postos militares permanentes e 165 portas fechadas ou prontas para serem fechadas a qualquer momento.
A entrevista é de Selena Pizarro, publicada por El Salto, 15-10-2022. A tradução é do Cepat.
Você acaba de chegar de Barcelona, onde esteve na apresentação do relatório 54 do Centre Delàs: “Negócios testados em combate. Exportar a marca ‘made in Israel’ para manter a ocupação e normalizar a injustiça”. Quais foram as conclusões do relatório?
Este relatório é muito importante, aborda os negócios militares entre Espanha e Israel e como esse comércio sustenta os assentamentos e ocupação israelenses, com o apoio à sua indústria militar, que é testada contra a população palestina.
Além disso, todas essas armas vendidas por Israel servem para vigiar as pessoas, são utilizadas contra migrantes ou mesmo para espionagem, e foi o que aconteceu em particular em Barcelona. Por isso, solicitamos que parem com esses acordos de livre comércio e com a cooperação militar e policial entre Espanha e Israel.
O que está acontecendo agora nos territórios palestinos?
Neste momento, está ocorrendo uma guerra aberta contra a população palestina, há assassinatos diários em Nablus, Jenin e Ramallah. Há muito tempo, absolutamente todos os dias acontecem revistas e, em diferentes pontos, de 15 a 20 pessoas são presas todas as noites. Os colonos nos assentamentos estão cada vez mais organizados e violentos porque trabalham em aliança com o exército.
Desde que em 2020 foi assinado o “acordo do século” entre os Estados Unidos e Israel, que tem como objetivo anexar a maior parte da Cisjordânia, está ocorrendo uma limpeza étnica em massa e veloz. Absolutamente todas as comunidades palestinas têm ordens de destruição, 36 comunidades no norte do Vale do Jordão, 46 perto de Jerusalém e 29 no sul.
Diante desse aumento progressivo da violência, o que a Autoridade Nacional Palestina está fazendo?
A Autoridade Nacional Palestina, que se espera que seja a entidade que deve liderar a resistência, na verdade, é colaboradora, não está fazendo nada, não tem poder algum, exceto aquele que exerce contra a própria população palestina. Claramente, estão recebendo pressões dos Estados Unidos e Israel para acabar com a resistência.
De fato, agora, está sendo preparada a nova liderança de Al-Fatah, que é um colaborador absoluto. Um dos grandes erros foi continuar acreditando na Autoridade Nacional Palestina, após a construção do muro da Cisjordânia, porque isto foi uma clara ruptura dos Acordos de Oslo e era aí que deveria ter sido dissolvida.
Em 2004, o Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, declarou este Muro ilegal, mas Israel continua sua ampliação.
Um dos principais objetivos a longo prazo desse muro é a limpeza étnica, novas Gazas estão sendo geradas onde não há expectativa de vida, o que querem é que a população saia de maneira forçada de seus territórios. Em 1989, quando Ariel Sharon retornou da África do Sul inspirado pelo sistema de apartheid, disse que, “hoje em dia, não se pode colocar pessoas em caminhões e jogá-las, mas é possível criar as condições positivas para convencê-las a sair”.
É isso que estão fazendo, criando as condições para que a vida seja tão inviável que as pessoas decidam ir embora. Não querem ser responsáveis por uma nova Nakba (catástrofe). Para isso, precisam de três coisas: engenharia demográfica, fragmentação geográfica e destruição da economia e dos recursos naturais.
Em 2009, você foi preso pelas autoridades israelenses, sendo libertado meses depois, sem ter acusações formais contra você. Como foram esses meses na prisão? Qual é a situação dos/das presos/as?
Evidentemente, ter ficado em uma prisão israelense foi uma experiência muito dura, ainda que por pouco tempo. Mas isto não é comparável à situação que os prisioneiros palestinos estão passando agora, porque hoje as prisões israelenses são muito piores.
Há muitos casos de prisioneiros doentes, como Nasser Abu Hamid, que praticamente está com câncer em todo o seu corpo e nem mesmo com todos os apelos da família recebe a liberdade em seus últimos momentos. Também crianças e mulheres são frequentemente presas.
Acredito que é o único país do mundo que prende crianças de sete a dez anos. São colocadas na prisão, interrogadas, assediadas e abusadas. O objetivo é destruir a próxima geração, eles as aterrorizam com a ocupação para que não sejam o início de uma revolução. De 1967 até agora, quase 1 milhão da população palestina passou pela prisão.
Em inícios de 2022, a Anistia Internacional e a Human Rights Watch apareceram na imprensa, após os relatórios publicados, com a conclusão de que Israel comete o crime de apartheid, uma reflexão que já aparecia para muitas organizações palestinas, israelenses e internacionais. Qual a sua opinião a respeito da publicação desses relatórios agora e não antes?
Alegramo-nos que finalmente as principais organizações internacionais de direitos humanos tenham dito a verdade em voz alta e falem da realidade de Israel como um estado colonial de apartheid, porque é isto desde a sua criação, em 1948. Também significa que a comunidade internacional deve tomar medidas para detê-lo, como aconteceu com a África do Sul.
Mas, apesar disso, nada muda no mundo e ainda podemos ver como os países europeus tratam Israel como um Estado democrático ou como se criminaliza o BDS [Boicote, Desinvestimento e Sanções] em lugares como a Espanha. A verdade é que Israel foi estabelecido para ser uma pedra angular do imperialismo no Oriente Médio.
Por exemplo, a Ucrânia passou a ter o direito de se defender e é apoiada com todos os tipos de armas, mas quando a população palestina se defende se torna criminosa, nós nos tornamos terroristas. Isto demonstra como estão utilizando toda a terminologia dos direitos humanos e a democracia para explorar as pessoas e massacrar comunidades.
Israel está imune há mais de 70 anos, não prestará contas mesmo que essas organizações internacionais tenham comprovado o crime de apartheid.
Como você diz, Israel é uma parte importante do sistema colonial e capitalista ocidental e sabemos que a Europa tem um papel decisivo na manutenção do apartheid contra a população palestina. Quais são as nossas responsabilidades, tanto dos governos quanto da sociedade civil?
Os governos têm a obrigação moral e legal de agir imediatamente para que Israel seja responsabilizado pelo crime de apartheid. Mas, infelizmente, isso não está acontecendo, apesar da maior responsabilidade sobre os seus ombros.
Como sociedade, é necessário nos levantarmos e nos unirmos à luta pelos direitos do povo palestino e por todas as outras lutas do mundo. Foi o que fizemos com a África do Sul, nossos governos não se levantaram imediatamente, na verdade, apoiavam o regime de apartheid. Por isso, temos que confiar em nosso poder.
Parece que uma batalha importante em favor dos direitos humanos na Palestina está sendo travada em âmbito internacional. A campanha BDS está trazendo esperança à comunidade palestina?
É claro, o BDS se tornou um dos movimentos mais respeitados na Palestina e as pessoas estão observando todas as conquistas alcançadas no mundo. Acompanham as notícias, veem como está a situação, as mudanças que ocorrem e a reação do regime israelense, que acabou colocando-o em sua lista de inimigos.
De fato, eles o consideram uma ameaça à existência de Israel, quando a única coisa que pedimos com o BDS é a justiça. Parece que a justiça se tornou uma ameaça para Israel. Por isso, quando falamos de um boicote, falamos de um movimento não violento que se compromete com o direito internacional, os direitos humanos e as resoluções da Organização das Nações Unidas.
As Forças de Defesa de Israel acabam de admitir, pela primeira vez, que existe uma “alta possibilidade” de que a jornalista do canal Al Jazeera, Shireen Abu Akleh, tenha sido morta por disparos israelenses, enquanto cobria uma operação militar em Jenin, em maio de 2022. Qual é a situação da imprensa na Palestina? O que aconteceu com Abu Akleh é um caso isolado?
Shireen era uma jornalista muito famosa e respeitada pelo povo palestino. Por mais de 20 anos, dia após dia, aparecia nos noticiários e falava com honestidade e de coração sobre a Palestina e os crimes israelenses. As pessoas a amavam e, apesar disso, foi claramente assassinada. Um franco-atirador a matou diante dos meios de comunicação, do mundo todo. Foi de propósito.
A imprensa palestina é perseguida, golpeada enquanto trabalha, assediada e presa por segurar suas câmeras e buscar cobrir os crimes israelenses. Não tenho um número exato e também não quero citar números, mas, sim, muitos jornalistas palestinos foram presos e assassinados.
Yair Lapid se tornou o primeiro chefe de Governo israelense, nos últimos seis anos, que apoia a criação de um Estado palestino no púlpito da Assembleia Geral da ONU. Considera isto possível para além de suas palavras?
De que Estado você está falando? Há 20 anos, estão destruindo sistematicamente qualquer possibilidade e agora é impossível ter um Estado palestino. Pavimentaram um dos piores sistemas de apartheid e dos mais sofisticados do mundo. A população palestina é assassinada todos os dias, enquanto seus assassinos voltam para suas casas e dormem em suas camas tranquilamente.
Nenhum deles foi levado aos tribunais, nem punido. Há comunidades palestinas que foram arrasadas e as pessoas estão vivendo nas ruas. Esta é a realidade do governo israelense e a realidade de Lapid. Os líderes israelenses são fascistas e as Nações Unidas não deveriam recebê-los, nem lhes dar terreno para falar sobre um Estado palestino, nem sobre os direitos das pessoas.
Atualmente, na Comunidade de Madri, há uma iniciativa para apoiar um projeto de lei contra o antissemitismo, a proposta do PP de Ayuso. Esta lei quer impedir por norma que empresas ou associações suspeitas de ser antissemitas recebam dinheiro público. Alguns partidos acusam esta nova lei de ser usada para cortar o financiamento de organizações que pedem sanções contra Israel. Qual é a sua opinião a esse respeito?
Penso que essa lei e aqueles que estão por trás dela são racistas. Nós, sim, estamos lutando contra o antissemitismo, mas o de verdade, não o termo que foi utilizado para silenciar e calar as pessoas. Acredito que essa lei tem que ser combatida pelos partidos e os movimentos sociais, e precisa ser levada urgentemente aos tribunais.
Não devemos ignorar esta via porque é uma lei antidemocrática. Além disso, é verdade que um dos principais objetivos é cortar o financiamento das organizações antirracistas, mas a longo prazo vai além. Essa lei é um ataque aos direitos humanos e à democracia.
Você poderia enviar uma mensagem à juventude palestina envolvida no ativismo pela defesa dos direitos humanos na Palestina, a partir da diáspora, em lugares como Madri?
Dentro do território, as novas gerações estão se organizando cada vez mais e lideram uma nova resistência, aliás, por esse motivo Israel está planejando isolar Nablus e Jenin, assim como fez com Gaza. Mas não temos outro caminho. Seria lamentável que as novas gerações se rendam, pois a realidade na Palestina agora é a escravidão. Até os animais têm mais direitos.
Por isso, faz parte de nossa natureza nos levantarmos e nos rebelarmos por nossa dignidade. A população palestina na diáspora também tem a responsabilidade de se unir e apoiar as pessoas que lutam contra a ocupação, o colonialismo, o apartheid e todos os crimes israelenses que enfrentamos na Palestina.
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“A população palestina é assassinada todos os dias”. Entrevista com Jamal Juma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU